Wednesday, November 02, 2005

Samsara











! Samsara!

Olhos de ressaca.Voce tem olhos de ressaca.
Foi assim que começamos nosso dialogo, eu e Sophie. Eu não sei quem falava mais, eu ou ela! Como? Ressaca? Isso é ruim? Olhos caídos, cansados, de ressaca? ela perguntava... Ri e respondi: não, de ressaca, mar revolto, Tsumani, avassalador, destruidor...voce tem uma força que me arrasta para dentro dos seus olhos, e pra não perder o controle, pra não ser arrastado e tragado,me agarrei às suas palavras.
Olhos de ressaca, olhos de cão azul, e continuei rindo da desconfiança de Sophie, filha de minha namorada, Fedra.

A noite mal começava em São Paulo...Somos amigos de longa data e era prazeiroso estar ali e como sempre veio a baila o mesmo assunto: Deus. No primeiro semestre após reler Nietzche me tornei ateu, mas me benzo antes de dormir e foram meses difíceis, pensei. Será que o ‘Cara’ esta me testando?...Piva ria. Eu e Fedra lemos o Saramago metendo o pau em Deus, e sempre era assim “ Ele”, “Deus, o “Cara”...até na hora de desacreditarmos Nele, colocamos ‘Seu’ nome em maiúsculas...Deus não foi desinventado por Nietzche? A cerveja rolava e a noite fluía com tantos amigos e saudades.
Vou ser pai novamente e não quero que minha filha passe nem em frente a uma igreja, as crianças não deveriam ser batizadas, a igreja é um cancro, “igreja pra quem precisa”...nós não precisamos....Clara! não precisará. nao ter aberto meus olhos nesse sentido foi um grande erro, perdi muito tempo atrás ‘Dele’....perdi meu tempo...nao quero que minha filha repita esse erro...Nicolau V na Idade Média assinou uma lei criando todo o império escravagista...A igreja proibia cirurgia, que se abrisse o corpo humano.

“ A cegueira ante o Cristianismo é o crime par excellence- o crime contra a vida- o cristão foi ate agora, o “ser moral”...mais absurdo, falso, vaidoso, leviano, mais prejudicial a si mesmo do que o maior dentre os desprezadores da humanidade jamais ousaria sonhar...”

Continuamos nossa noite bebendo e nos reencontrando: eu insistia com o Pablo Lima, Fedra, Lili, Fara, Piva, Sophie e Zigg- a igreja, a religião ,pra quem precisa? como disse Arnaldo Antunes- talvez se não houvesse esse sentimento religioso, dogmático, essas pessoas ( que precisam de policia e de igreja) fossem mais violentas? não sei, não quero ser preconceituoso- o bem e o mal- pode ser delírio meu, eu odeio policia e igreja. Piva assentiu. Todos os cidadãos-policiais do mundo. Zigg, meu filho, cristão(?), semi-pagao, sem ter feito a primeira comunhão e nem ter se batizado passava a mão em seus cachos e Fara, sua mulher me olhava. Eu sacava a dúvida judia nos seus olhos de bilhas me fitando.
“Uma coisa que não tem nome,essa coisa é o que somos...”.

“ a moral cristã- a forma mais maligna da vontade de mentira,a verdadeira Circe da humanidade: AQUILO QUE DETERIOROU...”

O fato de sermos afuncionais irrita setores da sociedade, do estabelecido, nós percebemos isso- e o que me deixa feliz apesar de toda a hipocrisia vigente é que nos tornamos ‘diferentes’, criamos nossa própria sociedade sem culpa cristã, nossos filhos podem circular em todos segmentos da sociedade sem preconceito, podem usufruir de tudo que o “ sistema” – com aspas mesmo- oferece e vivemos sem aquela culpa e não somos os “hippies” dos anos 60 que negavam a sociedade de consumo, pelo contrario, queremos tudo que ‘eles’ podem nos oferecer- mas não temos o comprometimento de compactuarmos com tudo...Percebi que todos nós, nessa mesa, eramos profisionais autônomos, ninguém tinha vinculo empregatício e portanto não tínhamos hora pra acordar no dia seguinte...Sophie ouvia atenta e agora percebia até onde queriamos chegar. Eu vou tratorizar o que eu puder do “sistema” mas não vou abrir mão de usa-lo e Clara! vai nascer nessa família com esse dogma.
Clara! Peticov Dorneles!

Estive com Arnaldo Baptista ( dos Mutantes) e Lucinha e Vera em BH e lhes contei como estava orgulhoso desse encontro histórico de situações.O Antonio Peticov, que será tio de Clara, foi o primeiro empresário dos Mutantes. Descobri pelo biografo do Arnaldo Baptista que eu fui o cara que esteve em três eventos dos Mutantes, mas isso é outra historia...E o fato de nascer minha filha, Clara, agora em outubro me suscitou tudo isso...
Fedra insistia, e o budismo? A anulação do ego? Você leu Bhagavadgita? Jogou I Ching?...eu me lembro quando o Galvão (poeta e bêbado das calçadas e mentor do Novos Baianos) dizia que todo mendigo era um yogue de ouvido.E penso assim: o nirvana de um yogue,o must de um budista é a aniquilaçao do ego. O cara passa anos meditando e comendo arroz integral e tentando aniquilar o ego e cantando aquele mantra em que ele só pronuncia a palavra OM. E, naquele momento que ele atinge o Nirvana, em que ele se ilumina? Em que ele fica UM com universo, Um com toda a humanidade. Em que ele é o Pai, o filho e o Espírito Santo. Santissima Trindade. Em que todos os mistérios são desvendados e não há mais mistério nenhum. Em que a Nova Era vislumbra à sua frente. Em que ele se sente perdoado por todos os erros, em que o pecado original não significa mais nada, em que ele se torna UM com o Cosmos( e Damião). Nesse momento em que ele é amor da cabeça aos pés.... Como fica o ego? Ele sabe que atingiu o Nirvana? O ego fica cheio de moral? Lili ria, ante o conflito, me perguntava,” e aí como é que fica?” Será que ele retorna tudo, volta ao “S” , continua a comer só arroz integral e meditar 24 horas por dia? Um mendigo será mesmo um yogue de ouvido, Galvão? Um mendigo? “você pode ate dançar com Damião, mas quem contrariar a lei dos cosmos não vai pagar, já paga ao contrariar...”
Pablo continuava instigando a conversa sobre deus
( agora já, com todo o respeito, com minúsculas):
-você se sentiu ameaçado quando Nieztche desinven tou ele? Disfarcei meu ‘medo’ e falei sobre uma conversa que tive com o Lobão. Se não houvesse a intervenção da Igreja na sociedade, o peso do obscurantismo, a caça às bruxas,o homem teria pisado na Lua pelo menos 900 antes, por volta do ano 1000. Daí você pode imaginar quanto tempo perdemos,a perda histórica quando Galileu em 1616, teve que mentir que a Terra não era centro do universo pra não ser queimado pela “santa igreja”. Teve boa parte de sua obra censurada pela Igreja em todos paises cristãos e só recentemente o Vaticano liberou.

Zigg e Fara escutavam todo nosso papo torto sobre o colapso da religião e aí foi citado uma frase do Torquato Neto que silenciou toda a Avenida Paulista e toda a sala:
“ Não se pode matar o príncipe e deixar vivo o Princípio”.


-Olhos de ressaca foi sampleado de Machado de Assis, Capitu.
-Todos os personagens são fictícios exceto Clara, eu e Deus, obviamente.
- as frases entre aspas são de Friedrich Nietzche, José Saramago e Galvão.

“ Todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também”
( Paulo Leminski)

( Espero que Perdizes me trate tão bem quanto o Leblon)

Saturday, May 21, 2005

sou poeta?


Sou poeta?

A minha poesia não rima amor com dor
Sofrer com querer
Lua com nua
Não
Não rima policia com milícia...
Porque eu parto, eu reparto
No comício ou no hospício.
E sinto ate hoje a prisão e escuridão do ventre materno.

A minha poesia se fala por si
Se escreve por si
Eu ‘ fico fora de si’ o tempo todo’
A minha loucura não passa por protótipos
Estereótipos
Arquétipos
Porque minha loucura é pessoal e controlada
E tudo o que eu quero é estar sempre no controle dos meus atos
A minha poesia não se escreve, não se fala
não se cala
Porque eu sou poesia da cabeça aos pés
Eu vivo no disfarce da minha poesia
‘ no tríplice mistério do stop’
no mini-misterio do Torquato Neto, dos Anjos, dos Tavinhos Paes e Teixeiras...
a minha poesia não tem disfarces, mascaras
porque ela tem a juventude e a força dos bêbados.

Essa poesia (?) é dedicada ao Migg pela audição madrugadeira no Vidigal dos Novos Baianos:
“ minha velha é louca por mim, só porque sou assim
meu pai, por sua vez, se liga na minha...”

Guanabara, inverno de 2001.
Foto by Duca Moobwa.
Lucinha, Byra e Arnaldo Baptista.

Sunday, May 15, 2005

Eu, Lili, Pyva e Mel...

Eu, Lili, Pyva e Mel e algumas questões durante um baile da Orquestra Imperial.

Quantas oportunidades você perdeu por não saber dançar?
Quantas vezes você dançou por não saber perder
?


“Eu gostaria que ela me ligasse de madrugada, me fizesse surpresa no trabalho, me enviasse e-mails pornograficos, brigasse com ciumes de mim, escandalos em locais publicos.”. Começamos assim a conversa num restaurante, eu, minha irmã e duas amigas, a Mel e Lili, em São Paulo, semana passada.
Não nos víamos há muito tempo e era prazeiroso estar ali em companhia agradável e o papo corria. Conversávamos, enquanto a Orquestra Imperial não começava o baile, e matávamos as saudades.

Sabe, quando você fala em publico e ninguém presta atenção, parece que o teu assunto é desimportante e tal... eu me sentia assim no passado, agora eu superei, tem que se falar um pouco mais alto e olhar nos olhos de qualquer pessoa, escolhe uma e vai.
Eu queria ser amado, ser mais amado, tem fita métrica pra amor?, se ama mais que o outro?, porque o amor começa junto pros dois e geralmente quando acaba, termina só pra um, porque o amor não morre junto, como começa...?

Essas questões pululavam na minha cabeça entre uma cerveja e assuntos do passado remoto, nos anos 80, quando nós todos ( Lili e Pyva e amigos), havíamos acampado numa ilha carioca: Era uma vez uma expedição com 3 moças, moças? E 3 rapazes...

Eu pensava no meu amor, acho que perdido...Falei com Pyva, era o terceiro ou quarto aniversario que eu recebia presentes em branco, livros sem dedicatória, cds lacrados, agendas e fotos em branco, como se eu fosse um fugitivo, um marginal, algo que devesse ser escondido. Eu pensava, mas não falava pra Lili, o amor devia ter acabado, e pra mim, a prova cabal era essa, presentes sem nada escrito, um oi ou alô, até mesmo só assinando seu nome eu já aceitava, e agora, nesse ultimo aniversario, ganhei o Budapest do Chico Buarque, que li em três dias, totalmente em branco... Pensava nisso entre um chopp e outro e os olhos esbugalhados da Lili, minha amiga portenha com sotaque sacana carioca que minha irmã havia lhe ensinado entre gírias e palavrões brasucas que ela levou um tempo pra entender: e aí, como é que fica? Ela se distraiu e bebemos todos no seu copo, de sacanagem , pois ela disse ter nojo de copos compartilhados...depois ,pra completar, colocamos um pouquinho de cerveja de todos copos no seu...Ela riu e fingiu ter gostado, mas acho que não tocou mais no chopp.

Fomos pro Clube União Fraterna e a Orquestra tocava musicas dançantes dos 60. Não sei dançar, mas o excesso de drinks me deu a coragem dos bêbados e dancei. Com Pyva, no inicio, depois com Mel e depois não sei mas com quem, tinha uma roda de mulheres e eu rodopiava no salão feito um profissional com total segurança e me sentia extremamente feliz.
Eu pensava nisso tudo, da falta de amor enquanto falava com Pyva e a orquestra tocava. Nesse momento eu totalmente drink, talvez gago, queria falar com ela e as frases saiam incompletas: No niver do nosso pai, aos 71 anos....ela não ouvia mais e eu não conseguia acabar a idéia...as frases ficavam no ar e queria falar como foi importante a festa do nosso pai, como me senti feliz com a família reunida, o meu amor secreto, ali, ao lado, com seus pais e eu não podendo falar ou abraça-la ...Ela não ouvia mais o que eu falava, o som alto abafava minhas palavras e você nunca sabe ou não quer ouvir o que fala um bêbado por mais que você goste dele...vira um monologo, solilóquio...Na festa de 71 anos do nosso pai ele tentou reunir todos os amigos, achando que essa seria sua ultima comemoração...ela não me ouvia mesmo e eu estava totalmente gago a esta altura.

Ela me perguntava, um simples presente em branco, sem dedicatória, seria prova de desamor?, eu não conseguia responder, e as minhas frases eram inconclusivas, eu queria dançar, já não queria mais falar sobre isso e como Jose Costa, em Budapeste, só sentia vontade de sair fora, pegar um bilhete aéreo e não falar nunca mais com ela, deixa-la no vácuo...mudar de país como Jose Costa e ser lido por sua mulher. Na minha família ninguém me lê, talvez meu pai, deixei uns manuscritos no seu aniversario, que ele comentou, são fortes seus textos, né? Eu brinquei: são todos inspirados em ti, maconha, masturbação, tara por mulheres mutiladas....
Há algum tempo eu desconfiava da minha desimportancia na sua vida, eu era apenas um cara que lhe telefonava todos os dias na mesma hora com o mesmo assunto chato, com as mesmas estórias e falava sem parar porque ela não falava nada e eu não gosto dos espaços que ficam, das pausas, quando voce fala ao telefone e eu falava sem parar, eu percebia isso...eu falava sempre dos filhos, reclamava com ela dos meninos e sei que ela não gostava, talvez por se sentir culpada, eles passaram metade da vida com ela e agora moravam comigo...e eu reclamava sempre deles, dos meninos, que não eram mais meninos.

Mel queria dançar, e eu retornei ao salão, um musico me chamou e um fotografo me cobrou atenção... E a editora de uma revista qualquer, Quem, talvez,queria dançar ou falar comigo sobre a banda, a incrível estória do maestro Célio Varanda, mas o álcool e a musica já estavam alto na minha cabeça e eu não queria mais saber de trabalho, cadê a Pyva, será que eu dancei com ela? Estaria na fila do bar? Tem mais cerveja? Furei a fila no bar. Eu precisava de mais um drink.

Outro dia eu comentei com ela que era melhor dar um tempo na relação...eu via sua falta de apetite sexual, quase não me ligava...e ela não gostou, se aborreceu, interrompeu o almoço num bar no Jardim Botanico, ficou um mal estar...isso foi segunda, hoje é quinta e ela ate agora não me ligou, caso não telefone ate sexta vou começar a retirar suas fotos da cortiça e apagar seus vestigios, estou cansado de mendigar seu amor...migalhas de telefonemas e nenhum eu te amo...Farei um embrulho com seus objetos, esperarei uns dez dias e entrego pelo correio...nao, vou ficar bem quieto, minha ação será a não ação, minha resposta pra ela será meu silencio. Isso. Bem quieto é melhor. Pra que dar valor a quem não te ama? Homem que é homem não chora quando a mulher vai embora.

Aí, falei ao ouvido da Mel, não sei se ela ouvia: Amor, Ordem e Progresso. O quê? Ela berrava. Amor, o quê? Eu repetia no seu ouvido: Nós, eu, Macalé, Carlos Minc, Gabeira, Mario Pacheco, Arnaldo Baptista, Alex Polari, estamos propondo a inclusão da palavra Amor na bandeira do Brasil. Como? Porquê? É isso. O amor como plataforma nas campanhas políticas, queremos que o amor seja citado entre tantas metas, como educação, e etc. O amor vem por principio, a ordem por base e o progresso é que deve vir por fim. O Principio do Prazer? O amor. Ah, legal. Acho que ela só entendeu o final. Vamos dançar? A Orquestra tocava “Sem compromisso” do Geraldo Pereira e eu me divertia: quando pára o samba, bate palma e pede bis...Voce só dança com ele e diz que é sem compromisso, é bom acabar com isso, não sou nenhum Pai João. Maravilha, eu rodopiava com a quinta ou nona parceira no salão e me sentia grande e bonito, poeta e loquaz, verboso, essas sensações que só o álcool que te dá e perdi Pyva de vista e eu precisava de mais uma cerveja

Eu deixava meus textos de bobeira sobre os móveis, pensando que talvez ela pudesse ler. Estava cansado de ler meus textos pra ela e esperava suas opiniões em vão. Enquanto eu lia alto, percebia sua desatenção, ela pensava noutra coisa, olhava pro nada e eu perdia meu tempo. Comecei a sentir um prazer mórbido nas leituras obrigatorias...As vezes brincava que iria argui-la após a leitura e ela morria de medo...dizia estar chapada e que aquele não era o momento. Ela fingia que lia, as vezes, talvez por eu falar tanto sobre eles, contar detalhes, quando estivessem prontos, ela já não tinha mais saco de ler. Eu enviava por e-mail, ela dizia que não abria arquivos atachados, seu micro era micro mesmo e não abria.Então eu passei a copiar e editar, ctr c, ctr v, e mandava aberto no corpo do e-mail, mesmo assim, não recebia o menor comentário seu...As vezes comentava um erro de portugues ali, um erro de digitação aqui, mas eu percebia que era como as pessoas que não te escutam e ficam apenas repetindo o final das frases, fingindo, falando sei, sei....Ela não percebia o quanto era importante a sua opinião.

Eu contava isso pra Lili que ria e me segredava situações sobre seu casamento e temporada na Itália. Há quantos anos nos conhecíamos? Comentei que talvez eu tivesse conhecido mais sua irmã do que ela, mas não sei sei isso com certeza...eram os nebulosos anos 80 que tento esquecer.
Mel. Finalmente avistei Mel. Quase não tinha falado com ela, acho que passei o jantar todo falando de mim e de mim mesmo, numa ego trip, num olhar de umbigo, não a ouvi falar sobre sua carreira. Sua musica. Seu novo grupo. A gente fica tanto tempo sem se ver e quando se encontra é um atropelamento de idéias e sei mais dela pelo seu site do que...
Falamos muito de Migg, meu filho, e nossa temporada no verão de 99 em Ubatuba, desvendamos estórias etílicas que ninguém imaginava e ficava feliz de estar ali com a amiga, eu via pelo brilho de seus olhos que era importante nos encontrarmos.

Eu bebi a água lavada de sua blusa, cheirei suas calcinhas usadas. Foi isso. Ela me enfeitiçou há anos, eu não conseguia esquecer nada que envolvesse ela. Nosso ultimo encontro, um almoço, na segunda no restaurante Jóia, no Jardim Botanico, uma comida que não comi, uma despedida fria, com um beijo sem graça. Hoje é sexta e não nos falamos mais. Não vou ligar pra ela. Meu silencio seria um acinte? Eu que ligava todos os dias, mas ela reclamou...

Lili me pedia pra contar pela enésima vez a estoria do quarto escuro, uma estória antiga que contei infinitas vezes na nossa expedição da Ilha Grande, era assim, Lili, você imagina que está num quarto totalmente escuro, e aí rola uma relação oral com alguém do mesmo sexo que voce não sabia- e gostou-, porque o quarto era realmente escuro, era uma brincadeira, um jogo, não podia passar a mão no rosto, nem nada...aí,quando acabava, descobria que era alguém do mesmo sexo, e aí como é que fica? Passamos anos falando sobre isso, desde a expedição onde eram 3 garotos e 3 moças, moças??? Ela se divertia muito com seu sotaque maroto, carioca e portenho e seus lindos olhos de bilhas azuis. Ou verdes? A musica soava mais baixo e a gente conseguia se ouvir. Rodávamos pelo salão de arquitetura do século passado e a pista encerada, propícia a bailarinos incautos como eu.
Quantas vezes você dançou por não saber perder ?...

Eu vejo tudo se repetindo, o futuro se repetindo, não sei, a minha relação como um redemoinho, circular, onde o fim parece o inicio, o precipício do fim, vejo seu rosto, sua pele branca, branca, branca aos 19 anos, os lábios sensuais, libidinosos...tantos telefonemas, naquela época eu podia telefonar o tempo todo, hoje não...Já tem cinco dias que não falo com ela, me sinto junkie telefônico em plena abstenção...Perolas para poucos, pensei. Eu me sentia o máximo falando sem parar no telefone, gesticulando e imaginando sua expressão atenta, libriano e oral como sou.
Quantas vezes você perdeu por não saber dançar?

A orquestra diminuiu o ritmo e o volume. A fila no bar era imensa, já não queria mais dançar, o álcool subia e me sentia leve e sem culpa, totalmente inocente de tantos pecados no passado, a arrogância herdada de alguns anos de poder... o álcool tinha essa propriedade, fazia me sentir poeta e bonito e sem culpa. Acabou o baile mas a minha sede não, um roadie me surpreendeu falando que o ônibus já partiria. Me despedi das três amigas prometendo e-mails e visitas mais freqüentes...aquelas coisas que a gente fala quando se despede, se despede mil vezes quando se está embriagado... mil beijos e saudades.
Entrei no ônibus, adormeci e acordei no Rio, em pleno baixo Gávea às 10 da manhã, de ressaca. O sol parecia um carrasco com chicote nos meus olhos, e eu ainda não comprei meus óculos escuros, quando você me encontrar não fale comigo, não olhe pra mim, eu posso chorar, meus olhos ficam vermelhos, irritados, eu ainda não comprei meus óculos escuros, então quando você me encontrar, não olhe pra mim, eu posso chorar, eu posso chorar...
Olhando pro Morro Dois Irmãos, indo pro Vidigal, pensei e sorri: vou ouvir a musica de mim mesmo, vou deixar a barba crescer, espalhar minhas roupas pela casa, usar minha calça vermelha de Flash Gordon, ( tudo que ela detesta), e desistir desse romance sarapa. Não vou hipotecar minha liberdade, e ficarei feliz, diante dessa ruptura sinto-me terrivelmente mais livre pra escrever o meu sonho de amor perfeito, ou quase...
Escreverei minha estória em papeis de pão, em guardanapos nos bares e esquecer tudo...

Todos os personagens são reais e escrevi tudo isso sob o impacto de Budapeste, de Chico Buarque.
Pra Lili, Pyva e Mel que eu amo e me escutaram. Tantas palavras. Tontas palavras.


Byra Dorneles é alcoólatra confesso e calafate desempregado mas quer sair do nicho.

Sunday, May 01, 2005

Katia Buterfly


KATIA BUTERFLY

Fervorosa. Buliçosa.Fogosa. Incêndio do meio dia. Katia Buterfly era assim, por onde passava ficava seu rastro, sua marca, seu cheiro de fêmea no cio. Cadela, quente. Incendio do meio-dia, despertando paixões em homens, mulheres, animais, crianças. Aliciando menores, um jato de sexismo.
Katia tinha um namorado, Kadu, eram os anos 80 e ainda se namorava. Kadu. Sambista de berço criado na Tijuca, subúrbio do Rio metido a zona sul. Kadu era bem relacionado com os compositores de samba da velha e nova guarda. Respeitado pela bandidagem , então começando a se organizar, os traficantes, os braços locais. Mas Katia, tiete profissa, borboleta professa, só tinha olhos pra uma pessoa, uma então iniciante atriz e cantora pop, nordestina, que foi chamada de Tina Turner do sertão, Elba Ramalho. Eram os nebulosos, confusos anos 80.
Katia era modelo, business girl talvez, nunca se provou , figurinha fácil no underground carioca, fazia pontas em curtas obscuros, filmes B, pornográficos talvez , que passavam em salas também obscuras, no circuito alternativo internacional. Tinha talento nato, brilho, falava com profusão de detalhes, mutante vocabulário, gesticulava muito, misturava frases em inglês, português e francês com desenvoltura de quem tinha intimidade com as línguas e os paises, apesar de nunca ter saído do Brasil. Esbanjava charme e sensualidade. Over, é claro! Mas sua obsessão era Elba.Em qualquer buraco que Elba se apresentasse, lá estava na primeira fila e subia no palco, sempre, no bis. Me lembro de um grande show de Elba no Teatro Ipanema, produzido por Carlos Sion, em que Katia chegou cedo, já estava no sound check e Elba fingia não vê-la, querendo não dar importância, mas no final era a própria Elba que sempre puxava Katia pro palco e dançavam frenéticas e esvoaçantes como duas garotinhas de mãos dadas.
Katia era quente, ardilosa. Incêndio do meio-dia. Volátil.
Katia dizia que era modelo, figura desfrutável, sempre disponível, distribuía flyers nas horas vagas ( naquela época se dizia panfletos), no então badalado baixo Leblon. Fazia teatro a domicilio, aniversários, lia poesias nas ruas, intervenções e invasões em bares, museus, barca da Cantareira, que naqueles anos ( odiosos e difíceis pra mim) eram chamados de “performances” e que em 2000 seria conhecido como “Slam”.
Katia usava drogas? Não posso afirmar, naquela época o ácido puro, brow sugar, era algo precioso que só tinha acesso alguns malucos remanescentes dos 70 ( viviam atordoados pelas ruas com um brilho louco nos olhos) e a cocaína que era o forte das festas não era muito barata.
Uma vez fizemos uma viagem lisérgica, eu, Katia e Kadu na Quinta da Boa Vista.Ela com um gravador cassete tocando uma única fita, de quem? Elba, claro! Ouvimos “Ave de Prata” umas cinco horas seguidas, decorei todas as letras. Foi uma viagem mágica, era lindo ver Katia se movimentando, seu corpo cheio de luz...O sol nos seus cabelos, quantos elementos amavam aquela mulher? Ela não cansava de repetir uma frase de uma canção da moda: “Toquem o meu coração e façam a revolução...” Kadu ria e recitava numa mistura insana Augusto dos Anjos e Rimbaud, que ela desconhecia, dizia preferir os brasucas Torquato Neto e Chacal, ‘necessários e sagrados’ :
eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim. “


Nessa época Elba fez uma uma turnê pelo nordeste, ficou um mês no Teatro do Parque em Recife. Katia pegou um ônibus e feito mariposa foi atrás da sua luz, sua deusa. Obviamente chegou na cidade sem um tostão, entrou pela porta de serviço do teatro, cheia de fotos, flyers, lambe-lambe, botons, e se instalou no teatro. Se escondeu nas coxias, entre refletores, cenários e todas aquelas tralhas que os produtores sempre esquecem nos teatros e ficou lá durante toda a temporada, (feito Patti Smith morando no cinema pra ver Mick Jagger, em Gimme Shelter) , conseguiu a cópia da chave do camarim e por lá dormia envolta nas roupas de Elba, embriagada e extasiada pelo perfume de sua musa.
Elba voltou e no seu primeiro show, no Canecão, nunca esqueci quando vi seu enorme nome na frente da casa, com letras garrafais, me lembrei quando fui roadie do Zé Ramalho e Elba fazia backing vocal na banda e ela dizia que um dia seria uma grande cantora e atuaria no Canecão...Fiquei ali um tempo olhando o cartaz e imaginando sua emoção, a força de uma mulher brilhante, vitoriosa, nas suas ações persecutórias pelo estrelato, ali, realizado. Eu me emocionei, mas não tive coragem de ir ao camarim falar com ela.
No final do show como sempre, no bis, aplausos, aplausos, a platéia em êxtase com o furacão Elba, ela chega na boca do palco com sua super banda regida pelo maestro Zé Américo, agradece ao público e puxa Katia da primeira fila...se abraçam, se beijam, pude ver as lágrimas que rolavam do rosto das duas, ali vitoriosas, agarradas, abraçadas, sob os refletores, o Canecão lotado, uma explosão de energia.
Se elas transavam, tinham um caso, nunca se soube, talvez tudo fosse inofensiva brincadeira, Kadu era condescente, Katia tinha amigos e amigos e há muito que ele fazia vista grossa pra tudo...Katia era pipa voada, bala perdida, nas sextas- feiras colocava duas calcinhas na bolsa e uma escova de dentes e Deus sabe pra onde ia, com quem dormia...
Business girl, talvez? Ninguém sabia. Sensualidade over, sim.Incêndio nos cabelos. Katia exalava um forte cheiro de flores, um cheiro todo seu, inconfundível que desorientava as pessoas.
Acabaram os anos 80 (ainda bem!), vieram os mornos anos 90 e eu sobrevivo no disfarce da minha poesia. Fui ano passado no aniversário de 40 anos do Kadu e falamos muito sobre Katia daí nasceu a idéia de escrever sobre ela. Ele disse que Katia vive hoje numa cidade no litoral do sul, balzaquiana reclusa ou quarentona precoce, ninguém sabe ao certo sua idade...Montou uma escola pra modelos, business girl talvez, meninas que queiram o estrelato fácil, aqueles 15 minutos de fama que Wharol previu e os realitys shows comprovaram, pontas na Globo, filmes B, ensaios fotográficos nus, paparazzos...
E kadu, decidiu finalmente gravar seu cd, pode-se encontrá-lo as terças e quintas num bar de Copa, reduto de samba. Ali, com a barba por fazer, alcoólatra confesso, dependente de barbitúricos, cheio de livros nos braços, ele recita e confunde sua própria vida com seus poetas, Augusto dos Anjos, Nelson Cavaquinho, Baudelaire, Cartola...Entre uma conversa e outra, sempre as mesmas frases, feito mantra: “Eu sou um outro...”
Elba Ramalho, todos sabem onde chegou, uma mega star. Em 96 co-produzi o espetáculo “Grandes Encontros”, com Elba, Alceu Valença, Geraldinho Azevedo e Zé Ramalho, uma idéia embrionária do Moraes Moreira, e numa turnê pelo Nordeste, ficávamos nos intervalos no camarim, eu, Elba e Zé e recordamos essas estórias em Caruaru, ela ria muito mas não se ateve ao assunto groupie Kátia...O Quarteto acabou, após gravar dois cds, com imenso público no Brasil devido a ciumeiras e outros lances não publicáveis. Era de se imaginar, num certo momento do show, Elba parecia uma rainha abelha e o caras apenas músicos coadjuvantes...parecia que apenas o Zé Ramalho gostava de gravitar em torno dela, de seu brilho, tanto que eles continuaram em duo no Rock In Rio.
Fica na minha cabeça uma frase que a Katia cantava sempre:
“Temos todo o tempo do mundo. Somos tão jovens.”
Será mesmo, Katia Buterfly?

Todos personagens são reais, apenas alguns trechos foram romanceados, dedico este conto ao Fausto Fawcett e Tavinho Paes.




OUÇA A PALAVRA ELÉTRICA VOL.1